Homenagens

Prêmio Humanidade | Ana Carolina

O nome de Ana Carolina entrou em cena com a força de uma antítese, numa época em que a presença de mulheres no cinema era mínima e que o machismo na sociedade brasileira imperava.

O curta Indústria (1969) já revelava sua audácia em perverter os padrões do documentário da época inserindo cenas estilizadas, desafiando as representações oficiais do progresso com imagens e palavras que as contradiziam. O discurso político explícito anunciava uma artista brava, numa época em que crítica social era tratada como subversão.

A audácia de ostentar uma leitura tão pessoal de uma personalidade oficial torna o documentário Getúlio Vargas (1974) um filme surpreendente, que derruba o mito do pedestal, abalando a hierarquia que isolava e engrandecia as figuras de poder.

O intervalo até Mar de Rosas (1977), primeiro longa de ficção da cineasta, é mais que um período de maturação. A distensão gradual do regime militar nos anos da presidência de Ernesto Geisel (1974-1979) favoreceu o surgimento de filmes cuja potência rebelde não precisava mais se disfarçar sob alegorias.

Se Mar de Rosas é, sem dúvida, um filme feminista, ele o é no sentido amplo do termo, um movimento de insubmissão frente a toda forma de opressão, não apenas à dominação masculina. Como expressão disso, Ana Carolina implode a noção de ordem e de coerência, prioriza os absurdos e lança seus personagens numa espiral em que tudo foge ao controle. O diálogo excessivo simbolizava também, naquele momento, uma resposta explosiva ao longo período de censura e repressão imposto pela ditadura militar.

O termo “surrealismo” foi usado e abusado nas tentativas de analisar Mar de Rosas, e a inspiração nas ideias do movimento se reafirmaria no longa seguinte, Das Tripas Coração (1982). Aqui, o universo feminino aparece filtrado pelas visões oníricas de um homem, condensando fantasmas e desejos. O tema do poder e do controle não foge do horizonte, mas a cineasta aprofunda seu olhar explicitando a dimensão sexual, contrastando fantasias masculinas e femininas, opondo castração e gozo, tornando o homem refém.

O tríptico feminista se encerra com Sonho de Valsa (1987), no qual não se trata mais de ruptura ou de rebelião. Tereza, a mulher madura interpretada com brio por Xuxa Lopes, já não luta para se libertar, sua questão agora é: o que fazer com a liberdade?

Difíceis e ásperos, estes três filmes escapam do estereótipo que se costumava associar à noção incerta de “cinema feminino”, delimitado por narrativas delicadas, dramas de abandono e atuações sutis.

Após uma longa pausa nos anos 1990, Ana Carolina ressurgiu com sua ironia exuberante com Amélia (2000), nome símbolo da feminilidade na imaginação do macho-alfa brasileiro. Sem deixar de ser um retrato de mulher, o filme é também uma releitura ácida das relações de classe e retoma um fio que a cineasta parecia ter abandonado quando passou dos documentários para a ficção.

O passado, que ela visita em Amélia e nas ficções seguintes, Gregório de Mattos (2003), A Primeira Missa (2014) e no recente Paixões Recorrentes (2022), não é apenas um quadro, uma reconstituição cuidadosa. São filmes com a ambição de representar os Brasis, mas também de interpretar o país, desnudar o imaginário com que se quis identificá-lo, servir-se de seu caldeirão de contradições.

Pela ambição de seu percurso e por ter construído uma obra desafiadora, a 46a Mostra dedica a Ana Carolina o Prêmio Humanidade.